quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ARTIGO: Voando no Sertão, parte 4

O amigo e piloto Glauco Cavalcanti esteve no XCeará 2009 comigo e segue abaixo o quarto artigo escrito por ele, sobre as experiências e mitos do vôo no Sertão Cearense.


Desvendando os Mistérios de Quixadá – Parte IV

Myth Buster – Caçador de Mito

Por: Glauco Cavalcanti

www.megafly.blogspot.com

PARTE 4 – Roubadas e Resgate

"piloto de cross country competente é aquele capaz de sair da roubada sozinho se for preciso."

Quando mais novos assistimos aos filmes de Lampião e Maria Bonita no cangaço brasileiro. Virgulino Ferreira da Silva era um homem sanguinário que combatia o Estado e burlava a lei. No entanto dava dinheiro aos pobres e oprimidos. Herói e vilão. Sua maior competência era conhecer o cangaço e fugia em meio à vegetação do agreste com destreza. Conhecia as estradas e atalhos. Nunca se perdia. O mais incrível é que Lampião não tinha um GPS 76S. No entanto muitos foram aqueles que se perderam no sertão. Debaixo de sol escaldante e com pouca água a morte vem a galope. Os arbustos altos e espinhosos da Jurema dificultam a passagem e consomem a energia daqueles que já estão cansados da longa caminhada.

O quarto medo dos pilotos de asa delta tem a ver com os filmes do cangaço e as imagens que guardamos na memória. Aquela secura desértica com alguns arbustos e pequenos rochedos ameaçadores espalhados pelo caminho. Por isso o piloto pensa no momento onde pousa no meio do nada e tem a possibilidade de não ser encontrado. O medo de virar lenda no sertão assola a mente de muitos.

Em nível menor de preocupação, mas ainda presente na mente dos pilotos está o receio do retorno do resgate que pode durar dez, doze ou até mesmo quinze horas. Então fica aquela sensação – ao pousar tenho que ser encontrado para sair da roubada. Mas quando sou encontrado começa uma nova roubada que é encarar dez horas de carro em estrada de chão. Vem aquele pensamento: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Se eu lhe conheço bem meu caro leitor, afinal já estamos juntos a quatro textos consecutivos, posso adivinhar sua pergunta. Por isso faça-a sem cerimônia: "até que ponto isto é verdade?"

Primeiro temos que entender que o sertão, assim como o restante do país cresceu e muito. Lugares inóspitos no passado são vilas e vilarejos hoje em dia, alguns viraram cidades. Por isso ao pousar sempre há uma vila por perto, mesmo que seja formada por duas ou três famílias. Estas famílias são humildes e vivem de subsistência, um povo que vive da criação de gado, galinha, porco e também do plantio. Pessoas simples, mas com coração e generosidade que eu jamais vi.

Quando você pousa próximo a um vilarejo as pessoas correm para te ver, assim como estamos acostumados no restante do país. Mas aí vem o mais mágico da história. Ao desmontar a asa os sertanejos dizem: "Ocê deve tá cum fomi menino! Vô prepará um lanchinho prôcê." O lanchinho na verdade é uma pratada de baião de dois (mistura de arroz com feijão de corda) que muitas vezes acompanha carne-seca e farofa. Comida simples sim, mas boa e bem feita.

Rogenildo (neto), Glauco, Dona Minelvina e Seu Zé (filho)


Foi assim que fui recebido pela Dona Minelvina, uma senhora de setenta anos que tem sete filhos, quinze netos e sei lá quantos bisnetos. Mulher especial com sorriso fácil e fala mansa. Com aquele jeito de matriarca me mandou tomar um banho para me refrescar. Banho de cuia no banheiro em chão de barro. Depois do cansaço do vôo e desmontagem da asa debaixo do sol escaldante, tomar um banho é uma graça divina, o troféu máximo para um guerreiro abatido.

Depois de banho tomado e barriga cheia vem a hora da redinha. Dona Minelvina grita: "Rogenildo (um de seus netos), traz a redínha para o moço descansá!". O que a senhora fala é ordem. Sou atendido de imediato e em menos de um minuto já me encontro na varanda da casa sendo balançado pelo vento, de banho tomado e "jiboiando" o almoço que foi devorado em dois tempos. Pergunto a você estimado leitor: "Cadê a roubada?"



Sr. Trota e Severino (neto) no pequeno vilarejo Boa Vista. Apenas três casas e uma igreja.


Seu Edmundo oferecendo um belíssimo almoço muito bem servido. Reparem que tem refrigerante na mesa. Eles normalmente tomam água. Refrigerante somente em ocasiões especiais.

Este tipo de experiência foi vivenciado não uma, duas ou três vezes, e sim, quase todas as vezes que voei em Quixadá. O mesmo aconteceu com os demais pilotos. Faz parte da cultura do sertão cearense oferecer ao visitante, principalmente quando é uma pessoa distinta como os pilotos de asa delta, um prato de comida, banho e a hospitalidade da casa. A generosidade do povo sertanejo é um dos grandes ganhos em voar Quixadá. As roubadas de pouso são compensadas pelo coração aberto de um povo simples, trabalhador e honesto que tem prazer em receber um visitante desconhecido. Traz para dentro da sua casa e oferece tudo que tem de melhor.

Mesmo quando pousamos em lugares afastados, esta vontade de ajudar é marca registrada do sertanejo. Eles levam sua asa no "lombo", providenciam caminhão, chamam moto taxi, enfim, o que eles puderem fazer para te tirar da roubada, pode ter certeza que eles farão. E sem cobrar nada. Isso é o mais incrível. É o ato de doar tempo e esforço sem esperar nada em troca. Fazem de coração. Por isso sempre dou um agrado ou pago uma cerveja como forma de alimentar esta amizade com o povo local. Interessante notar que o dinheiro não é o que faz a diferença, até porque eles estão acostumados a viver com muito pouco. O que mais alegra o povo é sua atenção. Responder as dúvidas e mostrar interesse pelas suas vidas. Tirar foto deles também é motivo de grande alegria. São muito vaidosos, mesmo vivendo no meio daquela poeira toda.

Mas existem aqueles raros vôos que você pousa no meio do nada mesmo, afastado da estrada e em locais mais isolados. No meu entendimento não existe roubada, e sim, piloto de cross country desprevenido. Para voar em Quixadá temos que levar o kit sobrevivência. Este kit inclui uma série de itens. Para simplificar segue o link do blog do Erick Vils com a listagem que previne qualquer roubada:

http://blog.vils.com.br/2007/11/sosertao-kit-roubada.html

Sejamos realistas e temos que concordar que depois da invenção do SPOT não existe mais roubada. O aparelho que envia a posição do piloto em tempo real via satélite é uma revolução para o nosso esporte. Neste ano eu estava junto com o Geraldo Nobre em Brasília e no meio do resgate liguei para o Chico Santos no Rio de Janeiro e pedi ao Chico que me dissesse a posição do Geraldo. O Chico consultou o computador e em menos de um minuto sabia que o Geraldo estava em Jaraguá. Sabia o exato local onde ele havia pousado e me passou as coordenadas.

Você pode pousar na maior roubada do século, um local sem sinal de telefone, radio e nem mesmo sinal de fumaça. Mas pode ter certeza que o resgate vai te achar com o SPOT. Isto é uma segurança e conforto sem igual para o piloto. Neste ano antes do início do XCeará houveram dois acidentes graves de parapente em Quixadá. O Ceará, um dos pilotos que se acidentou acionou o 911 (tecla de emergência do SPOT). Foi enviado um helicóptero ao local prontamente.

Estamos praticando um novo esporte em termos de segurança. Hoje em dia voo muito mais relaxado e tranqüilo, as pessoas sabem onde estou. Minha esposa acompanha meus vôos em Quixadá, Brasilia e outros picos do seu escritório no Rio de Janeiro. Atualmente acredito ser imprescindível a aquisição de um SPOT a todos os pilotos que querem fazer cross country de forma segura. O GPS 76S também é um conforto. É o caminho mais rápido para que você adquira o conhecimento de Lampião sobre as rotas, estradas e atalhos para sair da roubada. Só tome cuidado para não colocar GO TO Juazeiro do Norte. Uma das rotas que atinge 300km tem destino a cidadezinha de Juazeiro do Piauí.

Por fim quero dividir com você o momento de regresso ao QG, o belíssimo Hotel Pedra dos Ventos, gerenciado pelo também voador, Almeida. Interessante notar que no caminho de volta, a piscina do hotel com sua caipirinha de apenas R$2,50 é um excelente motivador. Queremos retornar no mesmo dia para desfrutar um dia de descanso da melhor qualidade. Mas a jornada de volta é longa. Afinal um vôo de 300km em linha reta gera um regresso na ordem de 500 a 600km. Sendo que parte da jornada em estrada de chão.


Curta sua caipirinha na maravilhosa pousada de Quixadá pra relaxar após um voaço


A princípio este cenário pode parecer desesperador. Uma viagem de dez a doze horas após um vôo que durou sete horas. A matemática racional a princípio nos faz ter esta lógica, onde somamos o cansaço físico do vôo ao desgaste da viagem de regresso. Muitos pilotos deixam de voar em Quixadá por este motivo. Não querem passar por esta roubada. Preferem fazer triangulação para que possam chegar em casa cedo e voar no dia seguinte. No entanto a matemática mental em Quixadá não é essa.

Após um vôo de seis ou sete horas sua mente entra em estado de plenitude e torpor. Uma sensação muito difícil de explicar e será compreendida quando vivenciada. O afastamento do ponto de partida também gera uma noção de viagem muito diferente da triangulação. Sendo assim, durante a volta de carro seu corpo está no automóvel, mas sua mente continua vagando pelo ar. A noção de tempo é totalmente afetada e eu particularmente tenho dificuldade de lembrar o tempo que fiquei dentro do carro.

Minha sugestão é que você não durma no local, e sim, regresse no mesmo dia. Aproveite este estado mental do vôo para percorrer a estrada de chão. Não faz mal que seja à noite e que o motorista vare a madrugada dirigindo. Você aproveita para dormir e descansar o corpo. No caminho parar nas cidades para tomar alguma coisa e confraternizar é saudável. O regresso é um momento de celebração e confraternização. A hora de lembrar os momentos do vôo e curtir a memória. Que ótimo que você tenha dez horas para saborear um dos melhores vôos da sua vida. Aproveite!

Entendo que roubada não está no pouso ou no resgate, e sim, está em nossas mentes. Sua atitude perante as dificuldades e obstáculos definirá o seu grau de estresse. Saber relaxar, curtir as conversas com os locais, se presentear com um bom banho, aproveitar para meditar quando está sozinho e contemplar um belíssimo pôr do sol, são boas coisas da vida que pilotos de cross country aprendem a valorizar.

Na verdade quando estamos na roubada aprendemos a dar valor às pequenas coisas da vida. Na cidade temos tanto, no entanto precisamos de tão pouco para viver. Sentado ao lado da Dona Minelvina, do Sr Trota e daqueles que me acolheram em suas humildes casas fui lembrado de quanto a felicidade está na simplicidade. Muitas vezes nós sabemos disso, mas a vida nos afasta desta realidade e são nestes momentos que somos trazidos de volta aos verdadeiros valores da vida. Gosto de voltar a Quixadá para ser lembrado. E quando isso acontece só me resta agradecer. Obrigado senhor!


MITO: AS ROUBADAS DE QUIXADÁ SÃO SINISTRAS

ESTE MITO É FALSO.

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